Música para espantar os males de hoje

Se a pizzica original tinha por finalidade curar as vítimas de ataques de tarântulas, a recuperação desta música (que também é dança) pelo Canzoniere Grecanico Salentino destina-se a exorcizar os demónios contemporâneos. Esta sexta-feira, a cerimónia acontece em Sines.

 

Apesar do aspecto ameaçador, mercê do tamanho e do pêlo, as tarântulas não são propriamente letais para os humanos. Ninguém fica paralisado ou a espumar da boca, nenhuma glote se contrai e asfixia, não há registos de quem tenha sucumbido às dores provocadas por uma picadela de tarântula. Na pior das hipóteses, com aquele seu peculiar hábito de esfregarem as patas no abdómen, produzem uma irritação cutânea de levar ao desespero qualquer humano que tenha o azar de ser tomado por predador.

Terá sido certamente essa reacção alérgica capaz de despertar uma gesticulação desvairada, ajudada por alguma mitificação, a fazer da tarântula a culpada das dores físicas (talvez sobretudo psicossomáticas) que se associam, na zona de Salento, Sul de Itália, ao comportamento possuído que era preciso exorcizar e expulsar através de um ritual efectuado ao som da pizzica. Maioritariamente mulheres de classes mais baixas (as tarântulas tinham uma padrão para os seus ataques), as vítimas salentinas prestavam-se então ao tarantismo, cerimónia destinada a livrá-las, com recurso à música e à dança, de todo o tormento que as acometia. “A pobre condição física ou psíquica encontrava muitas vezes no tarantismo uma forma de expressar o seu sofrimento”, explica ao Ípsilon Mauro Durante, líder do colectivoCanzoniere Grecanico Salentino, que esta sexta-feira se apresenta no Castelo de Sines, em mais uma edição do Festival Músicas do Mundo. Sabe do que fala porque a música que cria parte justamente de uma exploração da sonoridade da pizzica. “As pessoas podiam, através do ritual, dar a saber a toda a gente que estavam em sofrimento e que não queriam ser abandonadas. Hoje é um pouco diferente porque a dor e o sofrimento não são fáceis de partilhar socialmente e, regra geral, conduzem até ao isolamento.”

Mauro Durante concorda que há na pizzica e no tarantismo elementos comuns ao gnawa marroquino ou até mesmo ao vudu togolês e às cerimónias xamânicas sul-americanas. “(…) uma forma de sentir que pertencemos a uma comunidade e que estamos juntos”

Daí que a missão do Canzoniere Grecanico Salentino nunca tenha passado propriamente por contribuir para a cura de alguma senhora transtornada por uma ferroada de tarântula. Desde que a formação foi originalmente formada pela poetisa Rina Durante em meados dos anos 70 que a missão do grupo se centra na recuperação de uma tradição salentina, ao serviço não de um popular prontuário terapêutico mas da expurgação de outros males do espírito. Quando Daniele Durante, pai de Mauro, procurou Rina, informado de que a poetisa pretendia formar um grupo mas não cantava, não tocava nenhum instrumento e não dançava – o seu contributo era o enunciado teórico que lhe serviria de rastilho –, ignorava ainda que se iria encontrar com uma prima. O Canzoniere, de certa forma, afirmar-se-ia uma banda familiar, tendo Mauro sido investido pelo pai, em 2007, na condição de novo director musical do grupo.

A primeira decisão que tomou replicava, de certa maneira, o gesto fundador da primeira formação do Canzoniere: ao reconhecer na política do grupo o dever “de não olhar para a tradição de música e dança como algo que representa o passado”, susceptível de ser fechado atrás de uma vitrina de museu só do interesse de turistas obsessivos, ou de ser retratado num postal amarelado de uma época de charme incerto, foi à procura dos melhores músicos de pizzica da região da Apúlia (de que faz parte a Península Salentina, o salto “da bota de Itália”) e recrutou ainda outros “estranhos” que pudessem trazer alguma novidade ao som da banda. Depois, foi apenas aplicar a mesma regra às canções e dotá-las de letras que falassem para o presente salentino, não perdendo assim a missão de se incrustar na vida quotidiana do seu povo.

Os demónios actuais
É por isso que em Quaranta (álbum lançado já este ano e comemorativo do 40.º aniversário do colectivo), ou no anterior Pizzica Indiavolata, podemos encontrar temas que versam a situação dramática dos migrantes mortos no Mediterrâneo em busca do território europeu ou a magnífica sátira contra a TAP – não se trata de uma mensagem de oposição à privatização da companhia aérea que opera em Portugal, mas antes de uma canção de resistência que se insurge contra o chamado Trans Adriatic Pipeline. Convicto de que em toda a Europa as vozes dos cidadãos são facilmente silenciadas após o voto na urna – “Não temos qualquer influência nos políticos e nas políticas, pelo que é importante encontrarmos formas de expressar as nossas opiniões”, argumenta –, Mauro Durante refere-se a estas temáticas como “os demónios actuais”. Sem esvaziar a pizzica da sua intenção primeira, o músico acredita que basta redireccionar a música para as causas de sofrimento actuais, como “a dificuldade para os jovens de hoje de levarem as suas vidas e encontrarem o seu lugar num mundo afectado pela crise e pela sobre-especialização”, e assim se manterá a valência curativa da pizzica.

 

Em Quaranta, álbum lançado já este ano e comemorativo do 40.º aniversário do colectivo, podemos encontrar temas que versam a situação dramática dos migrantes mortos no Mediterrâneo em busca do território europeu ou a magnífica sátira contra a TAP

“Ao mesmo tempo”, acrescenta, “pensamos que todos os sentimentos positivos que emanam da nossa música e da nossa dança são das coisas mais bonitas que se podem experimentar no mundo”. Daí que a “cura” exista também naquilo que Mauro Durante identifica como “o poder de eliminar distâncias”, e que é específico da dança: “Quando se dança com outra pessoa está-se ao mesmo nível, não importa a posição social, o sexo, a idade, tudo isso é achatado, pisamos o mesmo chão enquanto nos olharmos nos olhos.” É nessa dança em estado de transe, como se para expulsar um demónio fosse a própria música a possuir os corpos, que Justin Adams (guitarrista de Robert Plant, produtor dos Tinariwen ou de Rachid Taha, membro do duo JuJu com o gabonês Juldeh Camara) reconhece semelhanças com os rituais (e as músicas associadas) do Norte de África. Mauro concorda que há na pizzica e no tarantismo elementos comuns ao gnawa marroquino ou até mesmo ao vudu togolês e às cerimónias xamânicas sul-americanas. Mas o subtexto que pretende implicar nessa dança e nessa eliminação de distância é o de que possa descobrir-se aqui “uma forma de sentir que pertencemos a uma comunidade e que estamos juntos”.

Se na Europa actual o músico encontra uma ausência de “solidariedade espiritual, sobretudo com as situações dos migrantes e com o caso grego”, aposta na música e na dança para ligar novamente as pessoas. Talvez toda a essência da música do Canzoniere Grecanico Salentino possa ser, assim, destapada por um verso escondido algures na letra de Taranta: “Se foi uma tarântula/ não me abandones/ Se dançares sozinho/ não te podes curar”.

 

 

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